A ORDEM E A OBEDIÊNCIA

As Obediências Iniciáticas tornaram-se estruturas macrossociais anti-iniciáticas. Foram, são e serão sempre organizações de natureza administrativa, materialista e profana, formas unidimensionais que não reflectem a natureza pluridimensional do próprio Homem, que é da Dupla Natureza da Carne e do Espírito. A Ordem, que é o alter-ego espiritual das Obediências, está para além da sua máscara obediencial.

A Ordem é a dimensão angélica-daimónica e supra-individual da Obediência, enquanto esta última é apenas a sua estrutura fantasma, material e jurídica, a sombra ignara do próprio Espírito. Se os seus Adeptos fossem Iluminados e não apenas funcionários associativos servindo uma estrutura oca e inerte espiritualmente, então ela poderia ser o veículo anímico de seu Sopro, do Pneuma da Tradição Primordial, aquilo que pelo jargão menfítico-misraínico chamamos “A Terra do Egipto”.

A Tradição Primordial (A Terra do Egipto) é uma só, embora as Ordens sejam algumas, puras emanações elohínicas do Principio Universal. As suas expressões obedienciais no tempo histórico são, no entanto, múltiplas e difusas, na maior parte dos casos formas degeneradas e dispositivos sociais inúteis sob o ponto de vista Iniciático. Uma estrutura torna-se degenerada iniciaticamente quando abandonou o dever de transformar cada Iniciado num Ser mais do que Humano. Muitas vezes isso acontece porque não lhe foram transmitidas as Chaves do Conhecimento que abrem os rituais obedienciais à sua contraparte espiritual.

O problema espiritual da actualidade, e que se vem aprofundando e degenerando desde o séc. XVIII, é a existência de uma ruptura ontológica entre a Obediência e a Ordem, entre a massa dos indivíduos acéfalos unidos sob a claraboia de uma Obediência desligada do seu Princípio Supra-Individual. No plano microcósmico, isso deve-se ao facto de se entrar nestas Obediências sem ter as qualificações iniciáticas necessárias, isto é, não ter o mínimo lampejo da sua contraparte espiritual nem anseio de o conhecer, limitando-se a vegetar numa sucessão de ritos espiritualmente vazios e actos solenes patéticos e vácuos. Esse fenómeno de teratologia obediencial expressa-se na inclinação histórica, desde o século XVIII, para o quantitativo, o especulativo e o político-social.

As Obediências devem nascer sempre, tal como a Árvore da Vida, de Cima para Baixo. Quando a parte Elohínica da Ordem se ausenta das Obediências então todas elas caiem da sua condição luminosa e iluminante e entram num processo de lenta agonia e entropia, de verdadeira displasia e deformação congénita, definhando e mumificando em estruturas corporativas maçónicas de interesse meramente político e fraternal, em protocolos, decretos, constituições, decorações e graus honoríficos, sem a energeia Iniciática. A Ordem ausenta-se e a Obediência fica reduzida, a partir de então, ao elemento retórico e alegórico do rito, à sua crosta, como um sedimento exterior, uma metástase.

A Obediência torna-se a guardiã do ornamento e uma cerimónia kitch, decaindo na estreiteza sentimental da Igreja ou na estreiteza do partidarismo e do clubismo. A Luz ausenta-se e a dureza das formas retóricas dos rituais e seus catecismos substitui a flexibilidade da energia gnósica e iluminativa da Vida Iniciática. Os seus rituais ficam estagnados, mumificados, anacrónicos e espiritualmente vazios. O estado das Obediências maçónicas de hoje resume-se a ser o ferro-velho do espiritualismo sincrético do séc. XVIII e XIX, transformado em ornamento espacial de reuniões clubísticas privadas.

As estruturas iniciáticas entraram em declínio quando deixaram de poder dar resposta espiritual à alienação e estupidificação no Devir Histórico e Existencial e à transformação cognitiva dos homens com qualificações para serem mais do que humanos. Porém, os seus membros estão tão dedicados a servir lealmente uma estrutura caquética e morta, que qualquer alarme de mudança, tanto interior como exterior, os leva a defender com mais intensidade e alienação a estrutura que servem e que devia ser sepultada, para vir a ser ressuscitada num plano alternativo do discurso e do vivencial.

Como cegos, carregam às costas  um cadáver que acreditam ainda estar vivo, mas são apenas cegos paramentados de cangalheiros a carregar às costas um caixão vazio. Dizem ser guiados pela Luz, mas apenas erram na obscuridade das luzes de falsidade que iluminam os seus actos inscientes e seus guiões teatrais a que chamam com estultícia rituais, os quais nem se dão ao trabalho de saber de cor, com o coração, de os assimilar na substância criativa de sua psique.

A alienação das Obediências é visível quando elas se limitam a cumprir regras de comportamento cívico e moral e a seguirem mimeticamente os seus pomposos rituais no circo de ignorância das igrejas e partidos que empestam o mundo iniciático, sufocando-o. Eles abdicaram do dever de serem “Livres” e “Despertos”. A Moral e a Justiça que defendem ser o cerne do seu processo de auto-aperfeiçoamento é apenas uma redução do Espiritual ao senso comum, cívico e profano, ao exotérico. A pomposidade litúrgica serve apenas para louvar um humanismo político e cristão, toldada de alegorias bíblicas e injunções jacobinas.

A Moral é um rebaixamento do Espiritual às convenções e normas sociais sacralizadas pelo respeito colectivo e o peso temporal da alucinação consensual. A Perda do Centro na Humanidade actual obscureceu e, além disso, obnubilou o próprio sentido da palavra Ordem, Obediência e Iniciado. Para cada momento de evolução cognitiva, cada Aeon da história humana, nasce sempre um novo modelo iniciático. Quem está no Centro e cria as Ordens sabe que no mundo da manifestação as Obediências são veículos formais onde deve descer o Sopro das Origens. Por isso elas mudam de face, em cada ciclo de mudança aeónica, em cada período de mudança da Palavra que reflecte o Silêncio. Mas o Espírito que sopra e permanece eternamente na Ordem pode já não soprar nas formas das Obediências mumificadas no tempo histórico.

As Obediências fraternais e filosóficas não percebem que vivemos num mundo de pensamento descrente, pós-cristão. Muitos dos faróis do esoterismo e do iniciático do século XX prescindiram das Obediências e das Igrejas, prescindiram mesmo de Cristo para alcançar o Despertar. Eles contactaram sozinhos a Ordem e a Tradição Primordial que sustentavam as Obediências e criaram faces novas ajustadas aos tempos em que viviam. Esses são os Gigantes, os Nephilim, da Era presente. Uma das razões da mumificação da Maçonaria é resultante dos seus Altos Graus não saberem já como contactar os planos internos da Ordem, nem os planos internos do Ser e do Cosmos. Deixaram, por isso, de receber o Sopro do Verbo e morreram mumificados em cerimónias palavrosas, ossificados numa organização moribunda onde os rituais se tornaram meras metástases cancerígenas.

Aquilo que há duzentos anos fazia reagir a consciência à mudança e transformação da consciência deixa-a agora indiferente e apática. Os rituais iniciáticos ossificaram em rotinas mortas, sufocadas de entulho retórico de natureza bíblica e cristã e preleções serôdias de civismo e moralismo, mais próprio de um infantário do que de pessoas superiores e esclarecidas. Eles estão completamente desfasados das necessidades espirituais das pessoas da actualidade que estão na vanguarda do pensar e do sentir e continuam presos ainda ao conceito calvinista do homem crente da sociedade pré-industrial.

Os primeiros a ter consciência desta entropia e degeneração foram Alessandro Cagliostro e Martinez de Pasqually e, depois, Aleister Crowley e Michael Bertiaux. À Maçonaria de salão que Martinez de Pasqually chamava de “apócrifa”, criando no séc. XVIII um sistema paramaçónico de carácter teúrgico, embora ainda preso ao velho e estafado entulho judaico-cristão, sucederam constantes ataques de rebeldia iluminativa contra a ossificação da Maçonaria. O Rito de Misraim foi, por isso, sempre um reduto de rebeldes prometeicos, visionários. Nós fazemos parte desse Impulso Iluminativo e Prometeico.

© Gilberto Lascariz & S∴S∴H∴L∴

(Revisão de Melusine de Mattos)

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Parte 3 – INICIAÇÃO E ORDENAÇÃO