A HIEROFANIA, UM CONCEITO GNÓSTICO E INICIÁTICO
Hierofante, do grego ἱεροφάντης, ‘o que mostra o sagrado’, é um termo que provém da união de duas palavras do latim: hiero= sagrado e phantes= o que mostra. Era o termo usado nos Mistérios de Elêusis. Desde a destruição e proibição cristãs destes Mistérios que esse termo deixou de ser usado para voltar a surgir no seio do Rito Antigo e Primitivo de Memphis-Misraim.
Trata-se de uma denominação de liderança iniciática inspirada pelo Logos e não uma eleição política típica de Grande Conselho. Ele está representado no Tarot pelo Arcano V, onde se funde o conceito de Sumo Sacerdote com o de Magus Maximus, isto é, o de Ipsissimus. Isso está exemplificado na lenda do Graal sob a forma do Cavaleiro Parzival, o herói do romance de Wolfram von Eschenbach, Guerreiro-Iluminado que alcança o estatuto de Rei do Graal através do auxílio permanentemente de Mulheres Faeries, símbolo da Alma do Iniciado, sendo Sacerdote e Mago simultaneamente.
O Poder do Númen
Cavaleiro e Faerie cooperam pela fórmula gnóstica da syzygy. Ele é, no entanto, mais do que o comum Sacerdote, pois a sua nomeação é feita pelas Potestades Celestes. Nos romances medievais ele é nomeado por direito próprio, pois é um Eleito, direito que lhe advém por hereditariedade angélico-humana de carácter Faery, isto é, de pertença à chamada Linhagem de Pendragon, à Família da Cabeça do Dragão. Entendamos aqui o conceito de angélico não no sentido da superstição teosófica, mas como uma referência a estados supra-individuais e gnósticos.
Desde o Rito Antigo e Primitivo da Maçonaria, designação criada por John Yarker, que a palavra Hierofante foi instituída como o preservador e conservador dos Mistérios dos Ritos de Memphis-Misraim, agora unificados num conceito novo e não apenas, como no tempo de Garibaldi, em que os dois Ritos tinham sido unidos pelo método de mera sobreposição. Na antiga Tradição de Mistérios, o Hierofante vem da descendência de uma família de cunho hierático, reconhecido pelas instituições atenienses. Já não vivemos reféns da ideia de que os Impulsos Espirituais se preservam no seio do Sangue Hierático de uma Família aristocrática de eleitos.
Era no Sangue que se ocultava o Númen do Clã Hierofânico. Na realidade, o que legitima a Hierofania é o contacto pessoal directo com uma Corrente de Sapiencialidade advinda do Númen da Tradição, num processo de Transmissão do Verbo por meios supra-individuais. Ele encarna aquele em quem a Iniciação é a Arte de “facere descendere spiritum” (in: Clavis Majoris Sapientiae). Actualmente, o conceito de família hierática não é tomado no sentido biológico, mas no sentido esotérico de uma aliança efectiva, mágica e teúrgica, entre o Iniciado e o Númen fundador da Tradição, trazendo ao plano físico da Obediência os desígnios e impulsos transmutatórios da Corrente Espiritual Supra-Individual.
A Natureza dos Elos Mágicos
O conceito de Hierofante nasceu dentro do Memphis-Misraim fundido num novo sistema de classificação iniciática criado por John Yarker. Isso aconteceu pela necessidade de preservar os elos psíquicos e mágicos entre o Cabeça da Tradição, verdadeiro Pendragon no plano terrestre, e a cabeça do Númen no plano celeste. Trata-se de uma Aliança Mágica, um Pacto Fáustico, se quisermos, ao estilo de Salomão com o Númen Asmodeus, que lhe elevou o chamado Templo de Salomão. Assim como cada ser humano tem o seu Daimon e Augoeidos assim o tem também cada Tradição. Esse conceito esotérico corresponde ao conceito pouco compreendido do Baphomet Templário, porém encarnado na carne viva de um Adepto e não no crânio santificado de um Ancestral. Não estranha, por isso, que nos Altos Graus de uma outra Ordem saída do seio do Memphis-Misraim, a O.T.O. (Ordo Templi Orientis), Aleister Crowley se tenha auto-designado como Baphomet, o seu Nomen Lucis.
Os processos democráticos de eleição para Grão-Mestre que encontramos nas Maçonarias Profanas não se enquadram no espírito das organizações de fundo iniciático e contexto hierático e mágico como o Memphis-Misraim. Diríamos que isso é outra demonstração do carácter exotérico, exterior e profano destas instituições maçónicas que se comparam a associações filantrópicas e sociedades comerciais, típicas da mentalidade de tradição burguesa e neo-liberal. A eleição do Hierofante deverá ser, por isso, determinada pela Presença do que se poderia chamar hoje a Marca Cainita, isto é, pela predisposição inata para apreender as dimensões não racionais da experiência humana, isto é, esotérica, e ser o porta-voz emanado do Verbo Daimónico de uma Tradição.
Na realidade, assim como cada individuo é de tripla natureza, também as Tradições Iniciáticas o são quando coaguladas no tempo histórico. Elas descem como impulsos angélico-gnósticos em corpos temporalmente organizados como seu receptáculo, de modo semelhante ao da incarnação no ser humano. Elas mantêm, por isso, na sua constituição físico-sensível um Corpo (Obediência), uma Alma (Egrégore) e o Espírito (Ordem), tendo também o seu Daimon, o Númen da Tradição. Deveria ser sempre o contacto com o Daimon-Númen da Tradição que deveria eleger a titularidade do Hierofante e não escolhas casuísticas baseadas em dispositivos sociais de lealdade pessoal ou de interesse profano. Mas, na realidade, é quase sempre o que acontece no seio das versões profanas do próprio Memphis-Misraim. Isso só seria possível, no entanto, por dispositivos mânticos e oraculares ou, então, por uma expressa marca de excelência, tanto intelectual como espiritual, isto é, gnóstica, no individuo que assume a máscara epifânica desta função demiúrgica.
Isto demonstra até que ponto a Tradição do Rito Antigo e Primitivo de Memphis-Misraim, uma expressão cunhada por Jean Bricaud e não por John Yarker, que usou a expressão Rito Antigo e Primitivo da Maçonaria, nos casos em que a organização que a representa são verdadeiros dispositivos iniciáticos e esotéricos e não meros dispositivos clubísticos de carácter profano e social, ou pior ainda, dispositivos sociais já fraccionados, quebrados e desestruturados pelas lógicas políticas de monopólio maçónico, como aconteceu na redução e encolhimento forçado do Rito de Memphis por Marconis de Nègre, em 1875, reduzindo-o de 95 para 33 graus, só para satisfazer as prioridades políticas de hegemonia do Grande Oriente de França. Sendo hoje um rito de novo redesperto e disseminado pelo Grande Oriente de França, não deixa de ser curioso e absurdo que use sem fundamento a expressão criada por Jean Bricaud, de Rito Antigo e Primitivo de Memphis-Misraim, para o seu rito fraccionado de Memphis. Na verdade, o Rito Antigo e Primitivo de Memphis-Misraim suporta hoje 99 graus e a posse dos Arcana Arcanorum, advindos da Escala de Nápoles e transmitidos de boca a ouvido, são essenciais à sua operatividade mágica e iniciática.
O Sistema de Syzygy
Uma das características da Tradição do Memphis-Misraim, tanto a do Soberano Santuário Hermético da Lusitânia como do Soberano Santuário do Brasil, da Linhagem Elton Pedutti da qual proviemos, é a manutenção de um sistema de Hierofania organizado pelo sistema de syzygies gnósticas. O sistema de syzygy, advindo do grego “conjuntos”, foi uma ideia de organização cosmogónica do Pleroma desenvolvida entre os gnósticos valentinianos dos primeiros séculos cristãos em que o Universo era criado e conservado pela interacção de pares nasculinos-femininos de Emanações do Um (Bythos ou Arkhe), chamados Aeons, ao modelo das Yab-Yum do Vajrayana Tibetano.
Tentamos manter este sistema de interacção cosmogónica-iniciática, sobretudo na base da fundação do Memphis-Misraim, isto é, no seu Soberano Santuário, que na semiótica esotérica é sempre uma Fundação Celeste e Superior, ao contrário das fundações profanas da existência material. É pela lei da circularidade universal de Força (Azoth) entre pólos opostos, o Homem e a Mulher, que o Logos irriga as nossas estruturas, tanto de Loja como do próprio Soberano Santuário. Por esse motivo, a Hierofania é partilhada sempre entre Homem e Mulher, espelhando não só o modelo das syzygies dos valentinianos, mas também o sistema usado hoje nas estruturas de Sacerdócio do Wicca e na estrutura das igrejas neo-gnósticas advindas da linhagem de Jules Doinel, entre o Bispo e a Sophia de algumas eclésias da actualidade.
© Gilberto Lascariz & S∴S∴H∴L∴
(Revisão de Melusine de Mattos)