A GNOSE EGIPCÍACA
O Soberano Santuário Hermético da Lusitânia é o núcleo interior e transpessoal de uma Estrutura Iniciática franco-maçónica, o Grande Oriente Hermético-Egípcio da Lusitânia, cuja Tradição recua lendariamente aos Mistérios Egípcios da Antiguidade. Ela tem o Egipto Antigo, a Terra de Khem, também chamada Terra Negra Original, como símbolo do Centro Primordial. Esta Tradição maçónico-teúrgica-alquímica foi activada na época oitocentista no Rito Egípcio do Conde Alessandro Cagliostro.
O Soberano Santuário Hermético da Lusitânia retoma esta Tradição de cariz teúrgico no seio do actual Memphis-Misraim. Porém, não se trata aqui do Egipto da arqueologia moderna, mas do Egipto simbólico de que fala o Corpus Hermeticum: «Ignoras, Asclépius, que o Egipto é a cópia do céu e da terra ou melhor dizendo, o lugar onde se transferem e projectam aqui em baixo todas as operações que governam e põem em obra as forças celestes? Bem mais do que isso, é preciso dizer, em toda a verdade, que a nossa terra é o templo do mundo inteiro». Essa Terra Hermética está representada no quadrado-longo das nossas Lojas.
Uma Via Sapiencial
É nos Mistérios Egípcios de Hórus, em Heliópolis, a egípcia Aunnu, onde este era reverenciado como uma divindade dupla, bicéfala, sob a forma de Heru-Set, assim como no papel representado pela figura de Ankh-af-na-Khonsu, o Príncipe-Sacerdote do Deus egípcio Montu, que viveu em Tebas na XXVI Dinastia, que se encontram lendariamente os Primeiros Impulsos da nossa Tradição. A sua Estela funerária, conhecida por “Estela da Revelação”, conserva a fórmula iniciática da Gnose Mágica deste Aeon. Ela encontra-se, por isso, sobre a ara central das nossas Lojas, em substituição dos livros sagrados abraâmicos do Velho Aeon, rejeitados pelo S∴S∴H∴L∴.
Dessa maneira, pretendemos reverter o efeito que Ottaviano, conhecido aristocrata, pensador e maçon do M∴M∴ do Soberano Santuário do Adriático de Itália, chamava de os “caracteres bárbaros do jeová hebraico” presentes na Maçonaria, entre nós sob o disfarce de uma ganga egípcia. Da mesma maneira o ilustre maçon Oswald Wirth, em carta a Marius Lepage de 4 de Setembro de 1934, dizia ser necessário “ensinar a Maçonaria pura, não cristianizada”.
Estela da Revelação
Na “Estela da Revelação” encontra-se exarado em hieróglifos a fórmula gnóstica egípcia que Aleister Crowley, grau 95º do M∴M∴ despertou do seu sono aeónico em 1904, no Cairo, ao estilo processual das syzygies ao colocar-se sob a direcção de sua contraparte feminina Rose Kelly, fazendo refluir dessa maneira os Impulsos Iniciáticos que já estavam semeados, mas não inteiramente compreendidos, na nossa Tradição Menfítico-Misraínica.
Não deixa de ser interessante salientar, embora tendo passado despercebido ao contingente de maçons nossos Irmãos, que a figura egípcia de Ankh-af-na-Khonsu é muito importante na nossa Tradição, embora oculta. Talvez, por isso, nunca a perceberam! Ele é o Ancestral Mítico fundador dos ensinamentos mágico-gnósticos preservados nos Mistérios de Toth-Hermes e que teriam chegado ao sábio egípcio Ormus. Sob a designação Ormus, ele foi considerado o Fundador Mítico da Linhagem de Memphis em 95 graus e não na sua forma amputada, diminuída e truncada posteriormente em 33º, imposta pelo Grande Oriente de França a Marconis de Nègre.
A palavra Ormus aparece pela primeira vez mencionada no livro “O Santuário de Memphis” de Jacques-Étienne Marconis de Nègre como fundador lendário desta Linhagem em 95º. Aí é apresentado como um Sacerdote de Memphis convertido por São Marcos. A nomeação reporta, no entanto, já a Jean de Gisors (1133-1220) que a encripta no seu monograma. Será provável que tenha estado na posse do Priorado de Sião do qual era Grão-Mestre. Lembremos que o Palácio Real do Dragão foi fundado pelos sacerdotes de Mendès sob o patrocínio do Príncipe-Sacerdote Ankh-af-na-Khonsu. Aí forneceram-se pela primeira vez ao seu sacerdócio as bases operativas para aceder à experiência de estados gnósticos e ao desenvolvimento e eclosão do corpo solar luminoso, o corpo de glória, associado aos Mistérios de Toth-Hermes, em Heliópolis. Curiosamente, era em Heliópolis que se encontrava a localização do Monte Primordial e o ponto por onde a Luz entrava no mundo.
É desta Terra Negra, Axial e Simbólica, verdadeiro Centro Espiritual, Monte Primordial, que desceu verticalmente, pela epifania inspiratória e revelatória, a Transmissão Iniciática da nossa Tradição. Depois, no séc. XIX, foi transposta horizontalmente pela linha diacrónica das suas transmissões temporais, em sucessivas emanações e eclosões históricas de cunho esotérico “egípcio”, sejam elas de cunho teúrgico, alquímico ou mágico. Esta Tradição visa a libertação e transmutação espiritual da Alma do Homem no Corpo Imortal de Glória, mas agora caída no turbilhão da ignorância e do esquecimento da sua Origem Divina. Em essência, o corpus ritual do Memphis-Misraim, isto é, aquele que se reporta ao grande ciclo dos graus operativos 34º-90º, muito em particular o quádruplo do 87º ao 90º, apela, como defendera Ottaviano, pseudónimo do distinto maçon e Príncipe Don Leone Caetani (1869-1935), a uma Via Sapiencial de raiz Pagã.
Contrariamente às formas religiosas e místicas, o Processo Iniciático caracteriza-se por estar ao serviço de pessoas que trazem qualificações iniciáticas, umas psicológicas e outras supra-sensíveis, para que o culminar transmutatório do homem em Deus seja possível. Isso está bem explícito nas lendas do Graal, onde o Iniciado, o Herói Parzival, é aquele que traz os impulsos faeries, isto é, não-humanos e supra–individuais, pela transmissão da sua linhagem associada à constelação Draco. De acordo com o preceito esotérico, os Processos Iniciáticos exigem qualificações subtis inatas, de uma outra ordem que não a da plebe. Plebe tomada aqui no sentido de um estado de alienação na consciência unidimensional do mundo racional-utilitário, preexistindo à Iniciação. É uma Via do Príncipe, isto é, de quem está num nível elevado de consciência, acima da consciência social e racional-utilitária. Só assim é possível a germinação e concretização futura de um Homem em Adepto.
O Homem Ontológico
O conceito de igualdade enquanto paridade ontológica é usado entre nós apenas no contexto da vivência esotérica entre genuínos Iniciados, tudo o resto, igualdade jurídica e social, sendo rejeitado como irrelevante sob o ponto de vista iniciático, pela nossa Tradição. Um bom cidadão não faz um bom Iniciado. A Iniciação é da esfera do Irracional e do Indomesticado. A igualdade entre todos os homens só tem sentido nas organizações profanas e exotéricas, no seio da sociedade profana e plebeia, tanto no seu contexto jurídico e político como no contexto das crenças cristãs.
Rejeitamos as chamadas instituições fraternais e filosóficas, tanto maçónicas como rosacrucianas, que confundem os Processos Iniciáticos com supérfluos ritos de passagem corporativa, meros simulacros teatrais, misturando os níveis de realidade subtil com os da realidade profana, submetendo-os, em muitos casos, aos valores mundanos desta última. Esta perversão dos níveis gnoseológicos, em que o superior é superado pelo inferior, é conhecida na linguagem esotérica pela Inversão dos Candelabros.
Somos igualmente indiferentes às estruturas maçónicas clubísticas, filantrópicas e humanistas, teratomas gerados pelo processo involutivo das organizações exotéricas e iluministas dos séculos XVIII e XIX, que advogam que o que mais importa deve ser definido em função da razão e de meros valores cívicos, morais e políticos de carácter fraternal. Ser fraternal numa ordem esotérica não tem o mesmo sentido que ser fraternal na ordem profana. Defendemos uma forma fraterna de trabalho sem distinções sociais, raciais ou religiosas; o adjectivo fraterno ou fraternal deve ser, no entanto, compreendido na perspectiva iniciática e gnóstica e não na perspectiva profana de um mero denominador comum para a nivelação e homogenização sociológica por baixo, isto é, em função daquilo que é apenas a crosta exterior do ser humano, típico das maçonarias actuais.
Conquanto possamos ser interpretados, até certo modo, como uma Academia Esotérica pela diversidade de Veios Iniciáticos que concorrem e desaguam na nossa organização, tanto de mão direita como de mão esquerda, onde se estudam e experimentam várias tendências do Esoterismo de carácter teúrgico, rosacruciano e neo-templário que no séc. XX confluíram na criatividade da retórica ritualista do Rito Antigo e Primitivo de Memphis-Misraim, não somos um corpo maçónico stricto sensu. Somos mais do que isso.
Não estamos em conflito ou oposição a qualquer corpo maçónico existente, mas reconhecemos, numa perspectiva iniciática de pura neutralidade gnóstica, que, na sua generalidade, são apenas estruturas historicamente mumificadas de onde se ausentou há muito o Sopro do Espírito. Elas languesceram e ossificaram em associações meramente clubísticas e filantrópicas, que Martinez de Pasqually apelidava de “Maçonaria Apócrifa” e Rémi Boyer de “sociedade profana, incapaz de ascese e de praxis, gangrenada por preocupações simplesmente burguesas”.
A Regularidade Vertical
Consideramos que as preocupações de regularidade formal e corporativa típica das Maçonarias Profanas actuais são preocupações pueris de conteúdo meramente administrativo e horizontal, sob o ponto de vista exterior e histórico. O que nos interessa, acima de tudo, é a regularidade vertical e a operatividade iniciática, gnósica e iluminativa, assim como a subsequente transmutação dos Iniciados. A regularidade de uma Ordem Iniciática deve avaliar-se não pelas transmissões meramente protocolares de papeis documentais, as chamadas “regularidades de papel”, sejam elas patentes ou outros documentos sucessórios, mas pela autenticidade substantiva dos seus resultados gnósticos potenciados pelos seus processos iniciáticos e não pelas suas formas adjectivantes e meramente exteriores. Contudo, deve salientar-se, mantemos toda a regularidade formal de transmissão como salvaguarda exterior da nossa regularidade formal e adjectiva.
Não estamos ligados a qualquer entidade político-partidária ou confissão religiosa, que consideramos serem apenas formas exteriores e profanas sem relevância iniciática. Para nós, elas decorrem da mera opinião ou crença. Somos homens e mulheres livres e independentes, tanto da alucinação consensual do mundo dos homens como das suas igrejas, irmanados por laços de fraternidade iniciática que se distinguem do juízo político da fraternidade maçónica. Estamos profundamente comprometidos com a realização da Grande Obra de transformação hermético-alquímica do Iniciado, que é a da integração cósmica e suprasensível (graus 1º-33º) e da deificação supra-individual (graus 34º-90º) do Iniciado. É curioso que sejam nestes graus finais de 34-90 que encontramos o retorno aos grandes Princípios Metafísicos do Paganismo Sapiencial, na figura de Mitra e Odin: temos o Grande Rito Teúrgico do 66º, no qual o Alto-Sacerdote se torna o Grande Teurgista e, ainda, os graus mágico-alquímicos do 87º ao 90º do Arcana-Arcanorum.
Um Desiderato Gnóstico
Temos por desiderato a transformação radical e substantiva de todo homem e mulher susceptível de vir a receber a Iniciação e transformação num Adepto, um estado que está para além de todas as preocupações profanas típicas dos modelos sociais, religiosos e intelectuais das maçonarias clubísticas e filantrópicas. Ele tem como base o estudo e a praxis da Arte e da Ciência Tradicional transmitida em Loja, encorajando e auxiliando cada pessoa na ultrapassagem do modelo de humanidade caduca em que vivemos e a produção de mecanismos mágico-teúrgicos e alquímicos que façam eclodir o encontro espiritual com o Daimon, também designado de Augoeidos ou Santo Anjo Guardião, condição obrigatória para uma verdadeira Gnose. A função desta Gnose é “reintegrar o homem na sua dignidade primordial”, como refere Jean-Pierre Giudicelli de Cressac Bachelerie. Rejeitamos a retórica exotérica e adjectivante das Maçonarias Profanas consubstanciada pelos atributos decorativos e a parafernália pueril de graus espiritualmente ineptos e inúteis.
Para nós, os processos genuinamente iniciáticos não têm qualquer relação intrínseca com o esforço de melhoramento e aperfeiçoamento moral dos seres humanos já que o que pretendemos é transcender a própria humanidade funcional, racional e utilitária, produto dos condicionamentos do rebanho humano. Esses deveres devem ser cumpridos apenas pelas organizações cívicas e religiosas, as regras do Direito e a atenta vigilância das organizações humanitárias.
É a confusão gerada por profanos, mesmo que Iniciados na Maçonaria, entre um padrão moral de vida e uma maneira correcta de viver entre os Adeptos, que decorre apenas das propriedades operativas do seu trabalho iniciático, em tudo semelhante aos actos higiénicos de um cirurgião antes de entrar numa mesa de operações, que demonstra o abismo gnósico que existe entre o que é conhecimento sapiencial de uma Maçonaria Iniciática e o que é conhecimento cívico-religioso da Maçonaria Profana, que confunde os valores profanos da cidadania com as prescrições esotéricas de um processo iniciático em laboratório alquímico e mágico. Enquanto uma decorre da superstição religiosa ou de imperativos cívicos profanos a outra decorre apenas de imperativos práticos de laboratório mágico-teúrgico, comparável aos comportamentos que na cultura africana Yoruba são classificados como portadores do àshe. É essa confusão de níveis que tem alienado a Maçonaria na massificação e nulificação crédula em meros princípios cívicos e morais enquadrados por dispositivos rituais que apenas servem para cimentar os laços sociais entre os membros associados.
A nossa tarefa é outra, bem diferente: transmutar e transfigurar os Iniciados na dimensão supra-humana que as tradições neoplatónicas designavam por Apoteose. Na Grande Loja Hermética-Egípcia da Lusitânia acolhemos, por isso, apenas pessoas que sejam livres de pensamento, no sentido iniciático e não no simples sentido jurídico e político-social, condição essa presente em qualquer hílico. O proponente deve ser conduzido na sua vida pessoal por ideais de auto-transformação e transfiguração na Gnose Eterna e não escravos felizes na ataraxia da grande colmeia e formigueiro dos hílicos.
© Gilberto Lascariz & S∴S∴H∴L∴
(Revisão de Melusine de Mattos)